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EDITORIAL 01/2024

    O projeto de pesquisa e extensão “FAZENDO COMUNS: a educação como projeto intra- e co-geracional”, vinculado ao Núcleo de Estudos da Infância, Adolescência e Juventude (NIAJ), da Universidade Federal do Rio de Janeiro coordenada pela Professora Lucia Rabello de Castro, apresenta este site que inauguramos oficialmente com a publicação desse primeiro Editorial, como a interface de comunicação e diálogo com a sociedade. Com ele, pretendemos trazer a público uma vertente importante deste projeto de pesquisa cujos resultados vêm acumulando um relevante conjunto de evidências sobre a demanda das crianças – estudantes de escolas públicas do município do Rio de Janeiro – sobre a importância do recreio escolar. “Vamos falar do recreio!” é o mote do site em que convidamos todas as pessoas interessadas a participarem da discussão pública sobre uma questão que atinge, basicamente, as crianças, mas que deve concernir a todos e todas, sensibilizados e atraídos pela justeza e legitimidade de pautas políticas insurgentes. Como as crianças são consideradas sujeitos pré-políticos na nossa sociedade – incapazes de se autorepresentar como cidadãos e sem gozar de seus direitos políticos plenos – parece fundamental que suas reivindicações possam ser também sustentadas por grupos que agem em sua defesa (‘advocacy groups’) tais como, pesquisadores da infância, profissionais de várias áreas que lidam com a infância, pais, professoras e outros. Além disso, nos parece fundamental, acompanhando a discussão trazida por Spyrou (2021) que, como pesquisadores da infância, possamos tornar nosso objeto de investigação um campo de discussão pública para que o conhecimento científico gerado tenha impacto social.

    Colocamo-nos, aqui, como pesquisadores da infância que trabalham há longo tempo sobre a temática da participação social e política das crianças nas sociedades contemporâneas. Temos concentrado muito de nosso direcionamento investigativo recente sobre a experiência escolar das crianças, principalmente no âmbito do ensino público, ouvindo as inquietações e angústias de crianças e adolescentes sobre esta experiência longa, e frequentemente, difícil que é sua vida escolar. Assim como o meio ambiente, sabemos da crise que atinge a educação escolar mundo afora atravessada pelas contradições do sistema capitalista. No Brasil, tal crise se mostra no colapso psíquico e físico dos e das professoras que, por todo o país, solicitam afastamento de suas funções em virtude de adoecimento; ou mesmo, da desistência precoce do magistério como profissão, girando em torno de 30%, o percentual daqueles que cursam as licenciaturas e desistem antes mesmo de pisar nas salas de aula. E, para nós, pesquisadores da infância, a crise da escola tem se evidenciado no grave e desconcertante desencontro entre as gerações de crianças e adultos, produzindo mal-estar, confronto e ressentimento mútuo. Sobretudo, para as crianças e os adolescentes, nossas pesquisas têm mostrado sua profunda insatisfação com a escola, e a falta de apreço e estima que sentem em relação à sua palavra e voz no espaço escolar. Se a educação, há um século atrás, era um projeto dos adultos para as crianças, no presente ela precisa ser compreendida como um processo que envolve a participação das duas gerações. Sem isso, a escola e os estudos tornam-se uma obrigação sem sentido para os menores, e um desempenho burocrático de rotinas
para os mais velhos.

    Ainda existe uma forma prevalente de se ver a criança como um indivíduo que não está formado, que precisará de um tempo para se desenvolver e aí, tornar-se, então, o que ele deve ser – um adulto. Essa forma de compreender os sujeitos infantis, que denominamos ‘desenvolvimentista’ é bastante disseminada, principalmente na visão de educadores, até porque esses estão vocacionados para enfatizar o valor prospectivo dos estudos e a importância da aprendizagem para a gradual transformação das crianças em futuros adultos. Neste sentido, se enfatiza na educação o ‘tornar-se conforme se aspira ser’ em detrimento do ‘se autoconhecer para ser o que se é’. Na primeira opção se entrelaçam a visão desenvolvimentista de infância, a de futuro como ontologia de transformação para melhor, e a de educação como a aquisição e o domínio de repertórios de conteúdos pré-estabelecidos. Essa perspectiva ampla foi, e tem sido, a visão hegemônica que modelou o movimento de escolarização no mundo moderno que, hoje, vem sofrendo duras críticas por parte de pesquisadores e pesquisadoras, e por todos aqueles que, no chão da escola, experimentam a caducidade deste modelo.
    Temos trabalhado há décadas, na interlocução com outros grupos de pesquisa nacionais e internacionais na área da infância, adolescência e juventude, na construção de outras compreensões teóricas que se afastam de uma noção desenvolvimentista sobre a infância. Desde a década de 80 do século passado, o campo de estudos sociais da infância transformou-se e expandiu-se, fazendo com que a pesquisa científica tenha se estabelecido em territórios disciplinares que, antes, não eram afeitos aos estudos da infância. Hoje, as ciências humanas e sociais – antropologia, comunicação, direito, educação, filosofia, geografia, história, psicologia, psicanálise, serviço social, sociologia – todas elas, têm a dizer sobre como é ser criança no mundo hoje. Isso significa uma expansão enorme do pensamento científico em torno de um objeto de estudo que exige a interlocução entre estudiosos de várias disciplinas. O grupo de consultores do presente projeto espelha, de algum modo, o esforço do pensamento interdisciplinar na construção de interpretações e análises sobre os resultados que obtivemos. Um denominador comum entre os estudiosos dos diferentes campos disciplinares na área da infância é a de que os sujeitos infantis devam ser considerados na sua diferença em relação aos adultos, cujo estatuto não é o da deficiência ou da insuficiência, mas o da diversidade que deve ser afirmada e respeitada. O destino de ser criança não é se tornar um adulto, assim como o destino de ser um adulto não é se tornar um idoso, ou de esse último, morrer. Esta lógica falaciosa – a desenvolvimentista – precisa ser repensada e revista. Ela não nos serve mais de guia para conhecermos como se é criança hoje (ou adulto, ou idoso), e muito menos, para nos orientar frente aos problemas inúmeros e graves das relações inter-geracionais.

    Este projeto de pesquisa lança mão da noção de ‘comuns’ como compreensão teórica que possibilita entender os efeitos das ações coletivas das crianças no contexto escolar. ‘Fazendo Comuns’, no título do projeto, significa o que as crianças, coletivamente, fazem, dizem, sentem e pensam sobre sua experiência de estudantes nas escolas públicas do município do Rio de Janeiro. A noção de ‘comuns’, resgatada e discutida por autores como Jeremy Gilbert, Gustavo Esteva, Silvia Federici, Christian Laval e Pierre Dardot, dentre outros autores, nos fornece a base teórica para pensarmos nas produções coletivas das crianças nas escolas, para além do que se deseja delas enquanto seres submetidos à lógica desenvolvimentista e à submissão silenciosa ao desejo dos adultos. No entanto, torna-se necessário que os resultados da presente pesquisa possam ser trazidos a público – para além da sua divulgação nas revistas científicas - e discutidos com os diversos setores da sociedade. Somente com essa interlocução a pesquisa científica pode se tornar conhecimento relevante para o avanço na compreensão dos impasses da educação dos mais novos presentes na atual sociedade brasileira.

Rio de Janeiro, 19 de março de 2024.

Lucia Rabello de Castro
Professora Titular
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Coordenadora Geral do Projeto ‘Fazendo Comuns’

Referências
Spyrou, S. (2021). A preliminary call for a critical public childhood studies. Childhood 28(2), 181-185.

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